Cleópatra (idem), de Júlio Bressane, 2008, Brasil.
Júlio Bressane precisa somente de dois planos, em Cleópatra, para contextualizar as relações políticas entre Roma e Egito no século anterior à era cristã. No primeiro, o Farol de Alexandria se ergue falicamente, símbolo da união sexual e estratégica da rainha Ptolomaica tanto com Júlio César, quanto com Marco Antônio. No segundo, a cabeça de Pompeu Magno - presente ao futuro ditador perpétuo romano - jaz decepada no prato, síntese dos acontecimentos que precipitam o fim da República e o começo do Império: a guerra civil de Pompeu contra Júlio César; a ascensão e o assassinato de César pelo Senado; a partilha de Roma entre Lépido, Marco Antônio e Otávio; a nova guerra civil, que opõe Marco Antônio a Otávio, Oriente ao Ocidente; a vitória de Otávio, nomeado Augusto, primeiro Imperador.
Filme sobre a decadência do mundo romano, embora Bressane quase não abandone os interiores - salvo quando transforma o litoral carioca no Mar Mediterrâneo, eixo econômico da Antigüidade que banhava Alexandria, capital da Dinastia Ptolomaica a que pertencia Cleópatra. Da mesma forma que em A Inglesa e o Duque e em O Agente Triplo, ambos de Eric Rohmer, os personagens, em vez de interagirem diretamente com a realidade, verbalizam sobre o cenário político em que estão imersos, o qual o cineasta não representa através de imagens, mas pelos sons que invadem o quadro: durante Cleópatra, escutam-se as Legiões que marcham por Roma, as espadas que se batem na guerra, ou a serpente que envenena a rainha egípcia.
Os cômicos senadores da República, de maquiagem afetada e com gestos típicos do cinema pastelão, atestam, para César, - Miguel Falabella retoma o personagem Caco Antibes, do humorístico televisivo Sai de Baixo, em vertente mais cínica e amarga - a imundície da vida mundana: o título de imperador já não lhe serve, mas apenas o de rei, que o iguala aos deuses. Marco Antônio, de início casado com Fúlvia e, depois, com Otávia (nobres “de testas altas e de rostos redondos”), não se basta com as posições sociais estabelecidas de líder político, de general e de marido não bastam, de modo que envereda pelos instintos básicos e primitivos do corpo - sobretudo na luxúria irracional e inconseqüente, como Baco. Quando se tornam amantes de Cleópatra, Júlio César e Marco Antônio também se deixam seduzir pela onírica e inebriante atmosfera egípcia - das luzes azuladas e da câmera elegante da fotografia de Walter Carvalho -, que incendeia a contestação da Ordem romana vigente.
Cleópatra, para Júlio Bressane, representa a quebra da estrutura masculina clássica de poder e de dominação. A mulher que guarda em si todo o universo, a vagina enquanto reflexo do cosmo, a alteridade misteriosa e indecifrável que desafia milênios de racionalismo eurocêntrico. A rainha, além de erótica, mostra-se hábil governante, que professa a tolerância religiosa e cultural (a seqüência em que acolhe os judeus no Egito). Na extraordinária interpretação de Alessandra Negrini, a personagem se destaca por sua elevada cultura e erudição: poliglota e multidisciplinar, que busca refúgio entre os manuscritos da Biblioteca de Alexandria, epicentro do saber na Antigüidade. A própria Cleópatra se define a síntese entre Ocidente e Oriente, Atenas e Alexandria, Vênus e Ísis, lógica e sentimento - vida intensa que se rebela contra a tirania dos medíocres e dos conformados, que não arriscam, não inovam e não se apaixonam.
Os excessos de Cleópatra, no entanto, acabam por condená-la à loucura e à solidão, uma vez que, com as mortes de Júlio César e de Marco Antônio, restam somente homens cujos espíritos pobres e cérebros tacanhos não aceitam, temem e debocham das novas experiências que a rainha egípicia lhes propõe. Talvez o filme de Bressane incomode por atacar diretamente a insensibilidade alheia.