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GUILHERME VAZ


Segunda-feira, 16 de Fevereiro de 2009


 

ENTREVISTA COM GUILHERME VAZ

 

Guilherme Vaz nasceu em Araguari (MG) em 1948. Seu interesse por música veio da infância, quando descobriu o que era improviso: “O ensino tradicional da arte tenta tornar o sujeito e o objeto uma coisa só, assim todos querem pintar como Goya, e nunca conseguem ser eles próprios. Só tem valor linguístico aquilo que parte do eu real.”

“Minha formação mais marcante se deu na Universidade de Brasília, tal como foi formulada por Darcy Ribeiro, seu primeiro reitor. Ele reuniu o que havia de mais avançado no Brasil. Essa formação é a origem do meu perfil essencial. Em 1964, a universidade foi violentamente extinta pelo regime militar. Antes de ir para o Rio, estive na Universidade Federal da Bahia (UFBA), com Walter Smetak, que influenciou muito os tropicalistas, como Caetano e Gil. Ele nos ensinava a fazer instrumentos. Foi uma grande experiência. Em 1968, criei a Unidade Experimental no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio, com Frederico Morais e Cildo Meireles. Conheci Bressane nessa época.”

“O regime militar transformou os currículos e mudou o ensino musical no Brasil. As universidades formam técnicos restritos à partitura. Não há estímulo para criar. Existem departamentos de música que formam compositores que nunca leram Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.”

A arte conceitual estava se tornando formal então fiquei oito anos com a tribo Gavião, de Rondônia É uma humanidade nova, eles vivem num eterno presente, numa vida simbólica.. Há em mim agora uma lentidão e uma certa serenidade que vem da vivência com o mundo indígena. É um conceito diferente do mundo branco, que não tem tempo para observar a arte do jeito que ela precisa ser apreciada.

São diversas trilhas para cinema:“Fome de amor” (1968), de Nelson Pereira dos Santos. Além de ter trabalhado com Nelson e Bressane, Vaz também compôs a trilha de “A rainha diaba” (1974), de Antônio Carlos Fontoura, e “Nosenaonos” (2003), de Sergio Bernardes. É também o autor da trilha de “O veneno da madrugada” (2005), filme de Ruy Guerra, baseado em “La mala hora”, de Gabriel García Márquez. Vaz conquistou o prêmio de melhor trilha sonora no 36º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro por “Filme de amor” (2003), dirigido por Júlio Bressane.















Foi em 2007 que nos reunimos algumas tardes na casa da Tetê, para conversas informais com o maestro Gulherme Vaz. O enfoque era a utilização do maracá e as músicas ritualísticas chamadas de hino no Santo Daime. O maestro baseou-se na sua convivência com os índios Gavião e sua formação musical para nos fazer refletir o que são os ensinamentos passados através de música e da palavra. Enquanto a anfitriã acendia e alimentava a lareira passamos uma tarde agradável com os ensinamentos desse compositor brasileiro.

GUILHERME: O que são as palavras e a música? São dois domínios do mundo, né? o domínio das forças reais que estão representadas em som e domínio das forças abstratas que estão representadas na palavra. O domínio das coisas que são... não tem relação com substâncias existenciais, reais. E o som é uma vivência sem palavras. Então são dois seres incompletos, o som e a palavra. Porque o mundo da vivência, sem explicação – que é o mundo do som – é muito ligado ao mundo das águas. Por exemplo: na tradição africana as Deusas da água não têm palavras, só murmuram. Não tem letra. Tudo é aquático. O mito da água; da vivência na água – e a Amazônia é cheia d’água, são sentimentos e vivências que você teve que não tem explicação. O que são essas duas dimensões? Um ser sem palavras, e o não ser com palavras. O que significa essas duas coisas e como juntá-las? Com isso formar uma canção que vai transmitir pro coletivo, uma experiência que enriquece todo mundo.

FLÁVIA: Então você está querendo dizer que fazer um hino é um chamamento?

GUILHERME: Você me disse uma coisa que eu não sabia que eu queria dizer. Mas é isso também. Porque se eu pensar bem, é um chamamento. Porque cada uma das pessoas que estão no Daime devem ter tido vivências que não narrou uns com os outros. Existem outras que são enriquecedoras pra muitos, né? Não só pra um. Esse encontro nosso, por exemplo, é enriquecedor pra todos. Pra mim também, pra todo mundo. O que é o mundo sem palavras e o que é o mundo com palavras. É um casamento. É um sentido da alquimia. É saber transferir pras palavras uma experiência que você não explica, às vezes de tão grandiosa que ela é. É juntar o vazio com o cheio. O hino é a junção de dois opostos – a palavra e o som. Os índios gaviões me disseram que os antigos deles falavam que antigamente não havia diferença entre música e fala, todo mundo cantava.

FLÁVIA: ou falava cantando...

GUILHERME: É, exatamente falava cantando. O pajé-gavião treina a pajelança de cura cantando e depois de certo ponto ele não fala mais com você. E o pajé do zoró também, você vai falar com ele, ele te responde cantando. Aí você vê que ele tá pegando aquela tradição antiqüíssima lá atrás, o pajé de cura deles ele fala assim com você: “ti ti ti dududu ti ti”(emite um som imitando o som do pajé com agudos e graves)assim, o tempo todo. Ele não fala como nós estamos falando. Repara que a nossa fala em geral tem três notas que a gente já tá treinado. Tem pessoas que até falam mais cantado... Se você vê nas línguas indígenas têm muito mais vogal que consoantes, né?

As vogais, você molda elas. E as consoantes na verdade não existem. Isso é importante também pra compor uma letra. Por exemplo: “p” , não existe “p”. Na verdade é um “é” com circunflexo com ataque diferente. Não é verdade? “Z”. Não existe “z”. O “z” é uma maneira de falar o “é”. Com um som sibilante antes. E o “p” é uma maneira de falar o “é” com som afirmativo antes. Por exemplo: “q”. Não existe “q”. Se você escrever “q” você não pode pronunciar “q”. Nem “t”. Eu só posso pronunciar uma consoante se tiver uma vogal. As consoantes são maneiras de emitir vogais.

Por exemplo: uailapiti é o nome de um povo. Tem também no Xingu... Tem povos Tupi que tem palavras quase impronunciáveis, palavras com doze vogais. Eu não dou conta de fazer não. Uma vez eu treinei e dei. Eu vou lembrar. É... São palavras que se fala: “Uila piti wela pa”. Isso é bonito pra cantar porque você tem muita possibilidade de emissão.

FLÁVIA: Mas e sobre “receber” hinos?

GUILHERME: Isso é uma categoria, eu acho. Poderiam ter hinos de meditação, né? Hinos de contemplação. Poderiam ter hinos narrativos da floresta. Podiam ter hinos de diversos tipos de filosofias diferentes da mesma visão. Não é necessário que seja colocado rigidamente como hino recebido. Você pode até declarar: esse é uma contemplação. Esse é um sentimento que eu tenho sobre a floresta ou sobre o mundo espiritual. É um sentimento que eu tenho que eu passei prum hino. Agora se ele foi recebido naturalmente é maior porque ele já vem pronto. Né?

FLÁVIA: E a pessoa pode usar um instrumento pra compor o hino?

GUILHERME: compor sem o instrumento é muito importante. Porque o instrumento ele já te dá um condicionamento. De harmonia... Você acaba indo por ele mais do que por você própria. O instrumento é muito poderoso. E aí tem pessoas que tocam, virtuoses. Na canção... Compor sem instrumento liberta mais a voz.

(Guilherme pede pra Tetê cantar um hino)

TT: Eu sempre tive um problema muito sério com música, né? A professora me tirava da sala porque eu tinha uma voz muito potente e muito desafinada, desentoada! Aí, eu nunca consegui ir a aula de música.

GUILHERME: uma pessoa que fala que deve se “desensinar” é o Cristóvão Buarque. Ta tudo tão errado que é preciso começar a “desensinar”. Porque por exemplo: a primeira coisa: desentoação. O que é entoação. O que é persona vocal? O que é a natureza vocal? Porque cada pessoa canta diferente. Porque não existem padrões. Porque que cada voz representa uma determinada natureza! O que isso tem a ver com a natureza? Cada árvore é uma coisa. E porque não se pode ter coisas iguais, você imagina... Por exemplo, a floresta na Sibéria, no norte, é só de pinheiro. Então uma cientista me falou que ela andou 1Km² e contou cinco ou seis espécies. E eu achava a floresta siberiana a coisa mais linda na natureza, e ela disse: não! Você está enganado. Em 1Km tinha cinco ou seis espécies, contando capim. E na Amazônia, em 1m² você tem mais que em 1Km² da siberiana. Então a monotonia da floresta(Siberiana) é enorme. E quando você chega na Amazônia e vê aquela riqueza toda, é porque tem milhares de espécies diferentes numa área muito pequena. As pessoas são muito parecidas com isso. É um perigo que o mundo ta correndo. Da uniformidade. Então é preciso deseducar para reeducar.

TT: Gostei disso!

GUILHERME: deseducar, é mais difícil que educar - que você pega uma pessoa em branco e vai ensinando a música assim: escala de dó, escala de ré... Mas e a música indiana que tem 48 escalas? Nós temos 12... Como é que a gente faz? Então você chega no meio dos índios e fala assim: não tem tom o que você está cantando. Que bobagem! Eles não pensam em tom. Eles têm uma nota de referência que tem que ver com muito mais coisa do que a idéia de tom. Quando a gente fala, por exemplo, o tom: isso na índia isso não quer dizer nada - se você tem, por exemplo, uma música que é das 9 da manhã às dez; outra das 10 às 11; das 11 ao meio dia e em cada uma dessas horas a música começa com uma nota diferente... Pra nós é tom. O tom existe a qualquer momento que você tocar é o mesmo. Isso não pode existir. Então nós somos muito primitivos. Então nosso pensamento é primitivo Os orientais não. Então quando a gente desenvolver nossa música aqui vai ser pra pegar todas essas funções. E levar à frente. Não existe ninguém desentoado.

FLÁVIA: Tu achas que Bach estragou tudo?(risos)

GUILHERME: Não sou só eu que acho não. Tem muita gente que acha. (risos) Por exemplo: tem um chamado Harry Part um cara que estuda microtonalismo. Que fala exatamente isso: Que você não pode ter divisões menores que um tom depois de Bach. E antes, na Índia, por exemplo, sempre teve divisões menores que um tom. Então na verdade a gente pode ter feito uma grande coisa por um lado, mas por outro lado não... Ele calou uma coisa. Ele fez uma grande coisa que é o sistema temperado. Ele codificou. Aliás, ninguém faz nada não... Isso é... A pessoa tem a noção de juntar aqueles conhecimentos e acaba num corpo de conhecimento que se fala: ele inventou. E não foi.

FLÁVIA: E o maracá? Queria que nos falasse um pouco de como os índios usam o maracá.

GUILHERME: O MARACÁ: um aprendizado e observações de quem o contempla, e começa a entendê-lo. É um instrumento simples, mas mágico. São muitos os mistérios da música, e mistérios são apenas coisas que não sabemos, mas que podemos intuir que existem, no silêncio. Ele não se manifesta de uma vez para as pessoas, o instrumento. E nisso, está de acordo com todas as sabedorias, porque todas elas têm caminhos. E há a fase da ignorância, pela qual todos têm que selar a sua passagem, caso contrário não há conhecimento, e nisso se encontra também a origem mística nas noções de custo e forma, e mesmo de beleza. O som se revelou para mim fora das escolas, especialmente em momentos que nada, nem ninguém estava presente, somente os seus significados e essências se movimentavam. A escola pede a não escola, e o leitor aquele que não lê; e o som pede o quintal, o silencio natural, para ser compreendido. Uma expressão misteriosa, porque todos temos o quintal dentro de nós, um mundo onde se movem as percepções dos seres e das coisas, a mata . Lá se encontram também seres que não leem, como na Amazônia, porque há somente e na maioria não-livros para ler, em parte isso é verdade... São os mundos dos analfabetos. A minha avó era analfabeta e eu estudei inglês, mas aprendo com quem não estudou nem a sua própria língua. São Francisco dizia que tudo está aberto para aqueles que pudessem ler a Natureza como um livro. È verdade. O Maracá é um dos mais simples instrumentos, e o seu som é produzido por sementes, esse é o começo de tudo. A semente. Um pequeno bulbo de madeira em forma esférica com sementes dentro. Convivi com os índios Ykolem por muito tempo, e pude ver e entender pelos começos o que é o Maracá. Mas ele não está desvendado. Seu som "limpa" o ar e o prepara para a música que vai ser cantada, e contemplada. Algum tempo depois em que estive com os índios Ykolem resolvi adentrar a mata alta noite, as beiras do Rio Amazonas , exatamente onde ele começa. Havia uma lagoa no meio da mata, longe de uma caminhada na selva, que eu queria visitar para ver as vitórias-régias à noite, resplendendo. Tomava-se uma canoa pelo rio, e depois de um tempo se atracava nas margens. Em seguida era preciso andar num trilheiro no meio da mata. Alta noite. Desci da canoa com o prático Carlitos , e começamos a andar . Ele é do Amazonas, de pai e mãe, mas começou a ficar perturbado na mata. Não sei porque racionalmente, mas tinha levado o meu Maracá. Ele contava historias que eu sentia que não cabiam ali. Tirei o meu Maracá e comecei a tocar andando no meio da mata, tocava e caminhava, como num rito. O Carlitos se acalmou e mesmo a floresta, naquela hora um dossel imenso e verde. Que refletia a luz das nossas lanternas, em plena mata. Eram duas horas da manhã no meio da Amazônia. Percebi que o som do Maracá "limpava" a energia da Floresta também, e neste momento provei o gosto e a função do instrumento no meio da imensidão amazônica. Esse é o sentido deste simples e belíssimo instrumento. O Daime, que vem da Amazônia, o adotou e o compreendeu . Muito tempo depois no Rio de Janeiro, quando conheci o povo do Daime pela primeira vez, pude falar do Maracá, e ver que as suas canções precisavam dele, como eu precisei dele, no meio da Floresta Amazônica. Alta Noite na Floresta. Ali ecoavam os sons das sementes, como no inicio do Mundo.

GUILHERME: Ah! E eu descobri que o pano ideal para proteger o maracá é o veludo vermelho, para proteção. É a cor do urucum. As sementes quanto mais finas melhor, e o ressonador quanto mais seco melhor. O maracá agudo é o superior - isto mostra que nada está úmido ou verde, e pouco curtido - sons leves e agudos - "maracá-de-espírito-elevado” Bom, acho que a gente já lançou uma semente hoje aqui. Tá bom por hoje?
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